quinta-feira, 2 de maio de 2019

VENTRE LIVRE



Voltava da fábrica de tecidos todos os dias pelo mesmo caminho.
Ele a esperava na calçada e repetia: oh mulata, ainda serás minha!
Ela sorria num ar de deboche, quem sabe provocação, e respondia:
português atrevido!
Ela de finos traços, olhos verdes, neta de um ventre livre e de um francês que se encantou com a negritude da Margarida.
Da fábrica de tecidos para os braços do português ... um, dois, três ... nasceu uma branca como a neve, cabelos castanhos claros e finos. Portuguesinha, diziam.
Coisas que só as leis das probabilidades aplicadas à genética poderiam explicar.
Não foram felizes para sempre.
O português, cansou-se do exótico e partiu.
Elas, sozinhas, sobreviveram na simplicidade da vida.
Quatorze anos se passaram e quase portuguesinha precisou trabalhar.
Documentos a recolher, descobriu que não tinha sido registrada.
Ah, o português? Casara-se com uma branca e tinha muitos filhos.
Restou à mulata de olhos verdes registrar sua filha sem pai.
No cartório, preto no branco, a certidão de nascimento da “branca como a neve”, quase portuguesinha empardeceu.
Coloriu sua vida independente dos que tentaram empalidecê-la.

©rosangelaSgoldoni
02 05 2019
RL T 6 637 796

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